segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Anjo Exterminador (Mexico - 1962) de Luis Buñuel


O anjo exterminador – Já o título sugere uma grande incongruência. Um anjo, que para a sociedade cristã significa, conforme São Tomás de Aquino, um ser superior ao homem, dotado de uma inteligência direta e instantânea. Os anjos não precisam refletir para distinguir o bem e o mal, simplesmente o sabem, e mesmo só praticando o bem, Buñuel coloca o anjo como um exterminador. Mas exterminador do que, exatamente? – Surge aí a primeira pergunta que ficará pendente. O que não é novidade no cinema característico do diretor que propõe infinitas questões dignas de reflexão. Outro paralelo ainda pode-se fazer com Tomás de Aquino. O filme está repleto de animais que, inexplicavelmente, percorrem os lugares. Conforme o santo, os animais ocupam um lugar abaixo dos homens, pois apesar de possuírem os sentidos, não possuem a razão, elemento importante para distinguir o homem dos animais. Mas se não é a própria razão que é atacada por Buñuel durante toda a sua obra? – Buñuel sempre deu ênfase aos sentidos nos seus filmes, talvez por uma preferência a um mundo menos racional, que seria, agora conforme David Hume, um mundo mais justo, já que as ações humanas são feitas conforme os sentidos e somente pela razão essas ações são repensadas e feitas de outro modo. Mas basta. Luis Buñuel nos deixa claro: “não quis utilizar símbolos, ao menos não conscientemente”. Acreditemos no diretor, embora fique a impressão de que Buñuel é dotado de um inconsciente bastante revolucionário, conforme seus carneiros invasores.
“A regra era recusar toda e qualquer imagem que pudesse ter uma explicação racional, ou pela memória, ou pela cultura. Fora essas, aceitamos toda imagem que nos chegasse e que nos impressionasse.”
Buñuel define aí a regra principal de seu primeiro cinema surreal. De fato, porém, não é o que vemos em O anjo exterminador, ao menos não inteiramente. Apesar de o filme aparentemente manter uma relação estreita com filmes como Cão Andaluz e Idade do ouro, são notáveis as diferenças entre essas duas fases do cinema de Buñuel. A partir da linearidade da narrativa que, em o anjo, nada tem de não-cronológica. O anjo nos conta uma história com começo, meio e fim (e nesta ordem), tornando-a compreensível e levando o espectador a um clímax; elementos que não ocorriam nos primeiros filmes do diretor. A tematização do “amor louco”, tão presente, principalmente, em Idade do Ouro, é substituída aqui por uma espécie de falso amor. O amor é como um jogo entre os personagens que lidam com ele por intenções segundas, tornando frágeis as relações entre os personagens. Mais que isso, a construção do filme visa fazer do espectador, também um analista crítico do que acontece na tela, e quase não estão presentes séries de imagens oníricas que têm como principal objetivo induzir a certos tipos de sensações. Enfim, se há algo que aproxima O anjo exterminador do surrealismo é, principalmente, seu ponto de partida para a história. Por algum motivo inexplicável as pessoas não conseguem sair da sala. E o “inexplicável” aqui é o que mais importa. Se antes o inexplicável fazia parte da narrativa como um todo, agora Buñuel o transfere para o ponto chave da história, ou para o início da narrativa, conforme concepção de Blanchot. Com isso, Buñuel desenvolve uma história relativamente realista em cima dum elemento surreal.
Partindo aos personagens, objeto alvo do filme, parece-me que Buñuel os cria e solta dentro de um pequeno espaço para forçá-los a se conhecerem no seu âmago. Após unir essas cobaias, nós, espectadores, somos colocados em um ponto de vista privilegiado, junto ao cientista que observa sua experiência, analisando criticamente comportamentos que de nobres e racionais tornam-se reles e instintivos. Por uma câmera que desliza pelos personagens detendo-se a um ou a outro somente até um momento antes daquele em que o discerniremos do todo. Assim, O Anjo faz revelarem-se seus personagens por eles mesmos; sem a ajuda de uma forma didática de crítica social, sem induções e sem alegorias (ao menos não conscientemente, lembremos). Simplesmente o réu condenando-se a si próprio. Provando, por estar sem alternativa, que é feito do mesmo material que o resto, que está sujeito às mesmas intempéries, que o cerne da carne e da matéria humana, bem como o comportamento e o caráter são condicionados pelo espaço, pelo meio, pelas situações.
A obra de Buñuel é marcada por personagens que não conseguem satisfazer seus desejos mais simples. Partindo de Idade do ouro, onde um casal deseja unir-se sem sucesso, passando pelo Discreto charme da burguesia, onde um grupo de representantes da alta classe não consegue sentar-se à mesa para uma refeição juntos, e também em Esse obscuro objeto do desejo, onde um homem que envelhece não consegue satisfazer seu desejo sexual. Em O anjo exterminador também um grupo de burgueses não consegue simplesmente ultrapassar um cômodo da casa, chegar ao outro lado, como se uma parede imaginária os impedisse. Enquanto os serviçais o fizeram sem problemas e não só o fizeram como foram impelidos a fazê-lo. Parece-me, aqui, que foram invertidos os papéis. Quem ficou trancafiado agora, sem saídas, obrigados a aguardar a morte de forma indigna, foram os próprios representantes de uma classe que, partindo para o nosso plano, colocou uma “parede invisível” frente à liberdade de toda uma classe, dita, inferior.

Por Guilherme Machado

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