terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Lolita



Minhas Lolitas

O ensaio não tem um modelo correto, objetivo, fixo. Percorremos, no ensaio, caminhos que passam por diversas disciplinas, expondo nossas idéias e relacionando-as, sem necessariamente chegar a uma conclusão objetiva.

(Ismail Xavier na 4a semana de cinema UFSC – 2010)

Da primeira vez que vi Lolita, não foi Kubrick quem me deixou envergonhado ao assistir ao filme com meus pais, mas Lyne. Aos 16 anos, experimentei muita coisa em pouco mais de duas horas de filme. Adrian Lyne preserva (por pouco que seja) algo que no filme de Kubrick1 se mostra como fator dos mais relevantes: a hibridação de gêneros. Quando digo que experimentei muita coisa, quero dizer que através do domínio que desde Nabokov, passando por Kubrick até Lyne, todos têm da narrativa, seja literária ou cinematográfica, eles conduzem o espectador a ter as mais diversas, às vezes opostas e incômodas (porque imorais) sensações. E é exatamente na questão narrativa do filme “Lolita” que os gêneros vão aparecer, ora para fazer-nos rir, ora para nos irritar, ter medo, compaixão, etc. A narrativa, ou o formato narrativo é quem vai determinando, ao longo do filme, os variados gêneros – minha crítica ao filme de Lyne já começa aqui revelando que as manobras narrativas de seu filme não são tão fortes e variadas como no de Kubrick, mas ainda assim existentes.

Para usar termos do professor Mauro Eduardo Pommer, brinca-se, nos dois filmes (mas principalmente no de Kubrick), com a questão do ponto de vista. O foco narrativo varia constantemente durante a estória. Para citar como exemplo no filme de Stanley Kubrick: estamos (nós enquanto espectador) acompanhando Humbert através da estória, temos uma narrativa de focalização interna fixa; tudo o que sabemos é o que o personagem que acompanhamos sabe; qualquer coisa que o surpreender, também nos surpreenderá. Esse momento pode ser o que Humbert chega pela primeira vez na casa de Charlotte. Agora voltemos para o início da estória: Humbert está com a arma empunhada prestes a descarregá-la em Clare Quilty. Esse mesmo Humbert sabe algo que nós não sabemos. Temos aí, conforme definição do Pommer, uma narrativa de focalização externa, que gera o mistério, sabemos menos que o protagonista. Agora vamos para outra parte, ainda com Kubrick: no momento do jantar entre Humbert e Charlotte, nós sabemos mais que Charlotte e que Humbert da situação. Sabemos que Humbert não quer nada com ela e sim com sua filha e sabemos que Charlotte quer Humbert a todo custo. Temos uma narrativa sem foco. Por sabermos mais que todos, a cena torna-se cômica. Faz-se a comédia, sobre a qual Aristóteles já dizia: composta de seres inferiores a nós. E assim permanece. Para tê-la, precisamos saber mais que os personagens, assim gozaremos de suas respectivas ignorâncias. É nítido, aqui, o relacionamento entre a forma narrativa e os gêneros.

O que me incomoda um pouco no filme de Lyne é que a hibridação de gêneros se mostra mais nas características gerais de um gênero e menos na narrativa. Na Lolita de 1962, temos a presença do drama, comédia, suspense, etc. com elementos desde os clichês mais clássicos como no exagero inverossímil da cena na sala de cinema entre Humbert, Charlotte e Lolita, até o mais sutil elemento da fotografia ou da construção narrativa. Como em algumas cenas caracterizadas fotograficamente como o noir; utilizando uma relação de contraste forte. O noir, que, por sua vez, é bastante presente no filme. Para além da fotografia, temos aquela que talvez seja a femme mais fatale do cinema americano, e o próprio filme é, como um todo, uma (ou várias) perseguição rodeada de mistério (Humbert pensa que a polícia o persegue, Quilty persegue Humbert, depois Humbert persegue Quilty).

(...) a traição, o crime, o cinismo, o pessimismo, a fatalidade, o ciúme, a tragédia são alguns dos temas recorrentes nessas narrativas de enredo muitas vezes bastante cifrado.(Luís Nogueira, pg. 32)

Aqui Nogueira nos fala de algumas definições do filme noir. Ainda que a definição do noir seja, conforme Nogueira, discutível, conseguimos encaixar todos esses elementos em Lolita. A traição perpassa o filme inteiro, seja na cabeça de Humbert (e na nossa) ou evidenciada pela própria Dolores. O cinismo está em Humbert e também em Lolita que sabe o que faz, mas continua a fazer por gosto. O crime é o grande receio de Humbert com os policiais e é aquele que nos faz sentir mal quando “torcemos” para o protagonista mesmo ele sendo um criminoso imoral. O pessimismo e o ciúme andam juntos com Humbert e toda sua doentia necessidade da menina. A tragédia começa já no início, onde “a partir de uma decisão, de uma ação dramática do personagem é que o destino se abaterá sobre ele” (tomo aqui emprestadas as palavras definidoras da tragédia de Leandro Saraiva e Newton Cannito, no livro Manual de Roteiro). E, enfim, é a fatalidade de Lolita que irá fazer-nos contorcer de compaixão, raiva e medo ao mesmo tempo. Um conflito sinestésico dos mais poderosos, diria eu, do cinema.

Luís Nogueira continua.

Alguns arquétipos que neste gênero podemos encontrar são o herói (ou, melhor dito, o anti herói, indeciso entre o bem e o mal) atormentado por uma culpa devoradora, em busca de redenção, mas enredado numa qualquer trama que só agudiza o seu cinismo, a sua solidão, o seu desencanto(...) Como responsável principal dessa trama encontramos a femme fatale, sensual e impecavelmente vestida, tão bela quanto perigosa, tão sedutora quanto letal, tão impulsiva quanto calculista, capaz de entretecer o destino do protagonista, num vórtice de paixão, traição e manipulação constante que só a morte pode parar. (Luís Nogueira, pg. 33)

Acredite, Nogueira não está definindo o filme Lolita em particular, mas sim o noir no trecho acima. Parece-me que Kubrick, ao fazer o filme, estava com o livro de Nogueira na mão conferindo-o a todo instante. Cronológicamente inviável, eu sei, mas não parece?

Partimos, então, para outro gênero que vejo mais presente na primeira parte do filme, até a morte de Charlotte: a comédia. Já falei, antes, de alguns pontos do filme onde ela está presente e como se faz através do uso dos pontos de vista na narrativa. Detenho-me, agora, nas características comuns a esse gênero vistas em Lolita.

De acordo com o professor Marcio Markendorf, algumas das características da comédia são o exagero, o absurdo e o escatológico (entre outras, mas são essas que, aqui, nos interessam). O exagero eu já mostrei na cena do filme de Kubrick em que os personagens estão no cinema, onde se mostra a comédia em meio a um filme de terror que é passado na tela diegética. Ou seja, o exagero das mãos dos personagens que vão colocando uma sobre as outras de forma inverossímil, mostra a fragilidade destes personagens ante algo que é pura ficção. Exagero também da inocência de Humbert às apelações de Charlotte. Resultado: riso. O absurdo e o escatológico iniciam no momento em que Humbert aceita ficar na casa exatamente quando vê Lolita. O abuso do mau gosto, ou do imoral, faz-nos rir. Mas não é um riso como o do simples exagero, é um riso contido, rimos porque estamos simpatizando com um criminoso, que noutra circunstância estaria sendo visto como um pedófilo repugnante. Rimos para não revelar nossa imoralidade. Mesmo assim: comédia.

A colocação de personagens-tipo nessa primeira parte do filme também é algo comum à comédia. Clare Quilty, como exemplo de um personagem-tipo, intelectual e excêntrico, representa bem essa ideia. O casal de amigos de Charlotte também: casal moderno, liberal. A classificação de personagem-tipo não é minha, e uso a autora para prevenir a comum confusão que se faz entre o personagem-tipo e o personagem estereotipado. Embora tanto o tipo quando o estereotipado sejam comuns à comédia, valorizo aquela que dá preferência ao tipo, visto ser uma comédia mais refinada em termos de roteiro e construção de personagens.

Uma personagem-tipo é algo bem diferente de um estereótipo. O velho patriarca ou o soldado fanfarrão são personagens-tipo, e não estereótipo, pois sua imagem é contrabalançada pelas imagens de outros pais e soldados(...) A personagem-tipo não sugere que todas as pessoas de um determinado grupo (por exemplo, soldados) tenham uma determinada característica (serem fanfarrões). Já os estereótipos, ao contrário, conduzem necessariamente a essa conclusão. (Linda Seger, pg. 213)

Num apanhado geral do gênero comédia, vemos que o final feliz é quase onipresente. Assim, diria eu, que o fim deste gênero em Lolita está na mais escatológica das cenas: a morte de Charlotte. Apenas nós e Humbert sabemos o que este sente. O desaviso de todos os outros personagens quanto ao que se passa, gera uma total comicidade na cena. E aí temos um final feliz: Humbert tem Lolita só para ele. Do relacionamento entre estes dois inicia, então, a predominância do drama na estória.

Para ser sincero eu não consigo ver um filme, seja o gênero que for, em que o drama não esteja presente. Em maior ou menor intensidade, o drama é necessário por diversos motivos. Não se tem um filme sem conflito entre personagens, sem conflitos de ações, sem criação de empatia espectador/personagem. Não se tem um filme sem a subjetividade do personagem. Mais que isso, não se tem um filme sem o bate-rebate que o drama faz acontecer entre o protagonista e o antagonista. Há lá suas exceções, e virão contradizer-me falando de filmes hollywoodianos de pura ação, onde o foco principal do filme está nos acontecimentos e não nos personagens. Revogo. Em todo filme há drama. Os filmes, por mais de ação que sejam, mostram, pelo menos em algumas cenas, elementos do drama. Os personagens se relacionam, tem personalidades distintas, provocam-se, etc. Mas, e é óbvio, vamos pensar no drama como gênero principal da obra. E aí me vem à cabeça ninguém menos que Bergman: o auge da representação deste gênero, em minha opinião. Vou tentar, então, ver elementos na filmografia do sueco que batam com Lolita.

Podemos partir de uma característica comum ao drama: realismo; que Bergman constrói dando uma impecável atenção àqueles que, para ele, constroem este elemento: os atores. Creio que ninguém vá contestar a atuação de Sue Lyon e James Mason (Kubrick), nem mesmo de Dominique Swain e Jeremy Irons (Lyne). Embora as atuações tenham sido diferentes entre os dois filmes, visto que a intenção do segundo era mostrar aquilo que o primeiro não havia podido pela censura, ambos tiveram atuações extremamente realistas. No que se refere ao roteiro, ainda que muitas vezes o filme tente esboçar algo inverossímil, a colocação destes fatos se dá de tal maneira que o que a priori seria inverossímil torna-se completamente cabível à sequência dos fatos. Posso citar como exemplo a morte de Charlotte: algo extremamente inverossímil porque parece resolver todos os problemas colocados até então pelo filme para o protagonista, e da forma mais cabal e simples possível, para não dizer “sem graça”. Mas porque essa resolução nos soa, apesar de tudo, realista e interessante? Bazin diria, em sua defesa a um estilo idiossincrático de realismo, que tal efeito é perfeitamente válido porque apesar de inverossímil, é colocado na narrativa de forma que torna-se aceitável como se pudesse ocorrer conosco no plano real. E de fato pode!

(...) O poder fundamental da imagem cinematográfica está em projetar um “valor de realidade” sobre a mentira ou seja lá o que for que se passe diante da câmera. (...) É preciso que os truques aplicados aos fatos que se passam diante da câmera colaborem com a objetividade essencial do registro cinematográfico, compondo um mundo imaginário inserido num espaço à imagem do real. (Ismail Xavier, pg. 85)

Ismail Xavier descreve a visão de Bazin sobre a criação de ilusão do real no cinema. Kubrick se aproxima de Bazin nessas inserções inverossímeis que, colocadas como estão na narrativa, tornam-se realistas. Porém afasta-se completamente do “escritor de cinema” (como diria Truffaut, questionando o fato de Bazin ser um teórico) quando coloca uma montagem essencialmente clássica.

Para além do realismo, comum ao drama, e também da subjetividade dos personagens (que também compõem o realismo), vamos ver como elemento do drama, em Lolita, a quase total falta de importância dada aos acontecimentos, enquanto o foco principal são os resultados que estes acontecimentos causam nos personagens. Há uma tal maneira de lidar com a introspectividade de Humbert que é de se relevar: somos colocados, pela narrativa, como cúmplices dos acontecimentos imorais de Humbert. Assim, temos acesso a um consciente que não é diretamente do personagem (como em Proust, que a partir do consciente do personagem, vamos chegar ao nosso próprio), o que seria feito com uma simples narração em off de Humbert sobre seus pensamentos. De outro modo, temos acesso a um consciente que é ao mesmo tempo de Humbert e o nosso próprio enquanto espectadores voyeurs cúmplices dos atos mostrados na tela. Um consciente conflituoso; sentimo-nos mal e ao mesmo tempo felizes de estarmos com Lolita. Esse conflito introspectivo, digo eu, é o conflito principal da narrativa. E talvez seja por isso que na maioria dos meios de exibição do filme Lolita, desde cinema, locadora até a internet, este filme é classificado como um drama. Algumas vezes acompanhado de outro gênero (drama/comédia, drama/romance, etc).

Por certo, o gênero drama tem seus subgêneros. Dentre os citados por Luís Nogueira (pg. 24) eu inseriria Lolita em três subgêneros do drama: psicológico, romântico e familiar. Resumo as definições de Luís Nogueira para cada:

Drama Psicológico – coloca o protagonista em confronto consigo mesmo, com seus medos e incertezas, espelhadas por aqueles que o rodeiam.

Drama Romântico – põe em foco as dificuldades e incomunicabilidades do par romântico, a sua transitoriedade ou incompatibilidade. Tende a suscitar maior envolvimento do espectador por mexer com o mais compulsivo dos afetos.

Drama Familiar – coloca elementos familiares em confronto. Disfuncionalidades familiares. Teenage movie, que trata das dificuldades no momento de amadurecimento do indivíduo.

Há uma miscelânea destes três subgêneros. O familiar e o romântico mesclam-se no incesto, levando-nos ao Psicológico por conseqüência.

Eu arriscaria dizer, que o próprio melodrama está presente enquanto intenção de levar o espectador ao pranto por meio de um elemento trágico. E aqui eu confrontaria dois conceitos de gênero quase opostos. Mas ainda assim válidos de serem colocados em Lolita.

(na tragédia)Tal como no melodrama, um homem se verá sozinho, isolado do congraçamento social, mas diferentemente de lá, o universo não será uma conspiração perversa que o vitimará e nós não estaremos identificados, e enclausurados, na perspectiva da vítima. Tanto personagem como público compreenderão o que está em jogo. (Saraiva e Cannito pg. 81)

Nessa passagem do livro Manual de Roteiro, vemos que Lolita não se encaixa inteiramente nem na tragédia, nem no melodrama. Mas está ligado aos dois em determinados pontos. Um homem se vê sozinho isolado do congraçamento social: ok, aqui estamos dentro do melodrama e da tragédia. O universo não será uma conspiração perversa que o vitimará e nós não estaremos identificados e enclausurados na perspectiva da vítima: aqui o filme vai mover-se entre os dois mundos (trágico e melodramático). Estaremos, por vezes, ligados totalmente a Humbert e partilharemos suas opiniões e vontades, julgando-o como vítima inocente frente a um mundo cruel (melodrama). Porém em outros momentos tomaremos certo distanciamento dele e diremos: Pera aí, isso não ta certo! E assim estaremos sendo trágicos ao propor-lhe um castigo pelas atrocidades que faz; buscaremos, assim, a catarse.

De seus aspectos principais, o thriller e suspense concentram-se na perseguição misteriosa que ronda Lolita, gerando medo e excitação por parte do espectador. Nogueira dá algumas características ao thriller, destaco algumas:

Instauração e perpetuação constante da dúvida sobre o desfecho dos acontecimentos e sobre o destino das personagens.

Sugestão verossímil, mas enganosa , de expectativas – deste modo o espectador é convidado a entrar num jogo de permanente inquietação, incerteza, ansiedade ou angústia.

Há, de fato, esse jogo de tentarmos ver nos entremeios qual será o destino dos personagens, mas somos sempre surpreendidos por acontecimentos que mudam constantemente nossa noção sobre o personagem.

Alguns personagens como Quilty e o psicólogo da escola de Lolita são colocados como personagens característicos ao thriller e à suspense. A própria cena em que Humbert encontra-se com o psicólogo no escuro de sua sala, gera uma excitação e medo de termos sido desvendados como pedófilos. E não sentimos isso como se fossemos nós próprios, espectadores, os pedófilos? Acho que dessa total identificação com o protagonista (comum ao thriller) é de onde veio a vergonha de que falei ao assistir ao filme com meus pais. Embora o personagem tenha força o suficiente para agir sobre o mundo ao estilo da tragédia, a composição do thriller vem sempre fazer-nos ver que há algo que pode nos destruir e ficamos inferiores a isso. Medo do inesperado. Polícia, o misterioso Quilty, a misteriosa Lolita. Quem são esses? O que eles querem, afinal? Ficamos nós e Humbert inferiores a isso tudo.

Bom, falei do noir, da comédia, do drama e de seus subgêneros, do thriller/suspense e ainda acho que Lolita abrange mais, porém me falta fundamento para falar doutros aspectos. Cabe-me ainda aprofundar um pouco mais em gêneros como o terror e a ficção científica para poder apontar elementos destes no filme de Kubrick, o que não me surpreenderia se os achasse, já que Kubrick, com sua filmografia, comprova dominar completamente esses gêneros. Por ora, basta. Acho interessante notar que, embora americano, Kubrick utiliza-se dos gêneros não apenas como elemento comercial, mas causando um efeito mesmo que é passado ao leitor de Nabokov, um conflito sinestésico entre o sentimento de culpa e paixão, medo e satisfação, relaxamento e tensão.

1Dei preferência, neste ensaio, para o filme de Stanley Kubrick, que entrará com maior enfoque. Por isso, quando faço referência “ao filme”, sem explicitar de quem é o filme de que estou falando, é ao filme de Kubrick e não de Lyne. Dou a Kubrick a autoria do filme Lolita, mas consciente de que o roteiro foi de Nabokov, tendo este, talvez, a maioria dos méritos pela construção própria da narrativa com a presença da hibridação dos gêneros que vai ser realçada pela direção.


Referências Bibliográficas

- Ismail Xavier; o Discurso Cinematográfico (editora Paz e Terra 4a edição – 2008)

- Leandro Saraiva e Newton Cannito; Manual de Roteiro (editora Conrad Livros – 2004)

- Luís Nogueira; Gêneros Cinematográficos (editora Livros Labcom – 2010)

- Linda Seger; Como criar personagens inesquecíveis (editora Bossa Nova – 1a edição)

- Mauro Eduardo Pommer; A questão do ponto de vista na narrativa cinematográfica (Tese)



segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Anjo Exterminador (Mexico - 1962) de Luis Buñuel


O anjo exterminador – Já o título sugere uma grande incongruência. Um anjo, que para a sociedade cristã significa, conforme São Tomás de Aquino, um ser superior ao homem, dotado de uma inteligência direta e instantânea. Os anjos não precisam refletir para distinguir o bem e o mal, simplesmente o sabem, e mesmo só praticando o bem, Buñuel coloca o anjo como um exterminador. Mas exterminador do que, exatamente? – Surge aí a primeira pergunta que ficará pendente. O que não é novidade no cinema característico do diretor que propõe infinitas questões dignas de reflexão. Outro paralelo ainda pode-se fazer com Tomás de Aquino. O filme está repleto de animais que, inexplicavelmente, percorrem os lugares. Conforme o santo, os animais ocupam um lugar abaixo dos homens, pois apesar de possuírem os sentidos, não possuem a razão, elemento importante para distinguir o homem dos animais. Mas se não é a própria razão que é atacada por Buñuel durante toda a sua obra? – Buñuel sempre deu ênfase aos sentidos nos seus filmes, talvez por uma preferência a um mundo menos racional, que seria, agora conforme David Hume, um mundo mais justo, já que as ações humanas são feitas conforme os sentidos e somente pela razão essas ações são repensadas e feitas de outro modo. Mas basta. Luis Buñuel nos deixa claro: “não quis utilizar símbolos, ao menos não conscientemente”. Acreditemos no diretor, embora fique a impressão de que Buñuel é dotado de um inconsciente bastante revolucionário, conforme seus carneiros invasores.
“A regra era recusar toda e qualquer imagem que pudesse ter uma explicação racional, ou pela memória, ou pela cultura. Fora essas, aceitamos toda imagem que nos chegasse e que nos impressionasse.”
Buñuel define aí a regra principal de seu primeiro cinema surreal. De fato, porém, não é o que vemos em O anjo exterminador, ao menos não inteiramente. Apesar de o filme aparentemente manter uma relação estreita com filmes como Cão Andaluz e Idade do ouro, são notáveis as diferenças entre essas duas fases do cinema de Buñuel. A partir da linearidade da narrativa que, em o anjo, nada tem de não-cronológica. O anjo nos conta uma história com começo, meio e fim (e nesta ordem), tornando-a compreensível e levando o espectador a um clímax; elementos que não ocorriam nos primeiros filmes do diretor. A tematização do “amor louco”, tão presente, principalmente, em Idade do Ouro, é substituída aqui por uma espécie de falso amor. O amor é como um jogo entre os personagens que lidam com ele por intenções segundas, tornando frágeis as relações entre os personagens. Mais que isso, a construção do filme visa fazer do espectador, também um analista crítico do que acontece na tela, e quase não estão presentes séries de imagens oníricas que têm como principal objetivo induzir a certos tipos de sensações. Enfim, se há algo que aproxima O anjo exterminador do surrealismo é, principalmente, seu ponto de partida para a história. Por algum motivo inexplicável as pessoas não conseguem sair da sala. E o “inexplicável” aqui é o que mais importa. Se antes o inexplicável fazia parte da narrativa como um todo, agora Buñuel o transfere para o ponto chave da história, ou para o início da narrativa, conforme concepção de Blanchot. Com isso, Buñuel desenvolve uma história relativamente realista em cima dum elemento surreal.
Partindo aos personagens, objeto alvo do filme, parece-me que Buñuel os cria e solta dentro de um pequeno espaço para forçá-los a se conhecerem no seu âmago. Após unir essas cobaias, nós, espectadores, somos colocados em um ponto de vista privilegiado, junto ao cientista que observa sua experiência, analisando criticamente comportamentos que de nobres e racionais tornam-se reles e instintivos. Por uma câmera que desliza pelos personagens detendo-se a um ou a outro somente até um momento antes daquele em que o discerniremos do todo. Assim, O Anjo faz revelarem-se seus personagens por eles mesmos; sem a ajuda de uma forma didática de crítica social, sem induções e sem alegorias (ao menos não conscientemente, lembremos). Simplesmente o réu condenando-se a si próprio. Provando, por estar sem alternativa, que é feito do mesmo material que o resto, que está sujeito às mesmas intempéries, que o cerne da carne e da matéria humana, bem como o comportamento e o caráter são condicionados pelo espaço, pelo meio, pelas situações.
A obra de Buñuel é marcada por personagens que não conseguem satisfazer seus desejos mais simples. Partindo de Idade do ouro, onde um casal deseja unir-se sem sucesso, passando pelo Discreto charme da burguesia, onde um grupo de representantes da alta classe não consegue sentar-se à mesa para uma refeição juntos, e também em Esse obscuro objeto do desejo, onde um homem que envelhece não consegue satisfazer seu desejo sexual. Em O anjo exterminador também um grupo de burgueses não consegue simplesmente ultrapassar um cômodo da casa, chegar ao outro lado, como se uma parede imaginária os impedisse. Enquanto os serviçais o fizeram sem problemas e não só o fizeram como foram impelidos a fazê-lo. Parece-me, aqui, que foram invertidos os papéis. Quem ficou trancafiado agora, sem saídas, obrigados a aguardar a morte de forma indigna, foram os próprios representantes de uma classe que, partindo para o nosso plano, colocou uma “parede invisível” frente à liberdade de toda uma classe, dita, inferior.

Por Guilherme Machado

domingo, 2 de maio de 2010

HIROSHIMA MON AMOUR (1959) - Alain Resnais


Sinopse: Hiroshima, 1959. Uma atriz francesa casada (Emmanuelle Riva) veio de Paris para trabalhar num filme sobre a paz. Ela tem um caso com um arquiteto japonês (Eiji Okada) também casado, cuja esposa está viajando. Nos dois dias que passam juntos várias lembranças vêm à tona enquanto esperam, de forma aflita, a hora da partida dela.

*fonte: www.makingoff.org

Sem dúvida uma obra prima de Resnais. Levando em conta, ainda, que este é o primeiro longa de ficção do diretor, vê-se o domínio que ele tem da arte.
Habituado com o documentário, Resnais opta por um início da ficção com imagens documentais dos resultados da bomba atômica em Hiroshima, numa montagem alternada com a cena de um casal (a princípio sem identidade pela proximidade da câmera aos corpos) que dialoga. Seus corpos estão cobertos por uma poeira cinza que nos dá a impressão de estarem debaixo de escombros; numa analogia direta às cinzas que a bomba deixou em Hiroshima.
É interessante notar que a voz da amante vai narrando o que as imagens vão mostrando, como num real documentário, porém o homem volta e meia contradiz a amante. Dizendo que ela não viu o que relata ter visto, que ela não conhece o que afirma conhecer. Isso aparece como uma dúvida do personagem japonês para com a francesa, como se ela não soubesse o sofrimento que foi a queda da bomba, como se os ocidentais não pudessem sentir na pele o que aconteceu com os japoneses - "neste dia, estava um lindo dia de sol em Paris" relacionando com o dia da bomba em Hiroshima - Ao longo da história, a francesa (passarei a chamar o casal do filme pelas nacionalidades, visto não possuírem nomes diegéticos) vai demonstrando os estragos que a guerra causou à sua vida, e provará que os ocidentais sofreram tanto quanto os orientais durante a guerra, pois mais do que acabar com vidas, a guerra acabou com grandes amores, o que, no filme, aparece como o sentido da vida principalmente da francesa.
Conforme passam-se as imagens documentais, vamos vendo a reconstrução de Hiroshima. Nos últimos planos dessas imagens, a câmera vai explorando a cidade como se fosse um trem que percorre as ruas, relacionando a continua persistência dos japoneses na reconstrução da cidade. Diversas vezes os personagens falam em rios que estão por toda parte, esses rios que não param de correr, que independente do que aconteça, eles continuam seu caminho, cada um com suas características, seja o rio de Hiroshima que talvez jamais vá ter seus peixes sadios novamente, seja o rio da cidade natal da francesa, Nevers, que é inavegável, por seus muitos bancos de areia.
Logo o filme abandona seus traços documentais e passa para um enredo em que a problemática é posta logo no início: os amantes têm apenas um dia juntos, pois no dia seguinte a francesa voltará para Paris. A narrativa então passa a girar em torno disso, o japonês quer que ela fique enquanto apesar da vontade dela de querer ficar, há algo que a impede; provavelmente o fato dos dois possuírem família. Mas parece haver algo mais da parte da francesa que em momento algum fica explícito. A profundidade desta personagem é incrível e a performance de Emmanuelle Riva consagra uma importância forte a esta personagem que nos instiga do início ao final do filme. Ela parece sempre esconder algo do espectador, algo que ela não revela e que faz com que imaginemos mil coisas.
Neste meio tempo, em que o japonês tenta convencê-la a ficar em Hiroshima, a francesa diz estar em Hiroshima para fazer um filme. - aqui uma ironia no sentido dúbio de sua fala - Está ela falando do filme diegético ou, de fato, do filme de Resnais? Ambos são filmes que fazem um apelo pela paz, e em ambos ela atua. "Afinal de contas, se fazem tantos filmes publicitários sobre sabão. Por que não um sobre a paz?" O filme está repleto destes diálogos dúbios que fazem o espectador refletir para quem se destina tais falas tão bem formuladas.
Detemo-nos, então, num ponto chave do filme. No diálogo que ela tem com o japonês momentos antes da partida, onde ela lhe conta sobre seu tempo de louca em Nevers. Uma loucura causada pela morte de seu antigo amor, um alemão. É neste diálogo (ou praticamente um monólogo da francesa) que vemos a profundidade da personagem, e o significado do amor para ela. Em meio aos seus flashbacks em que conta a história ao japonês, de seu tempo louca, vemos que a personagem se dirige ao japonês como sendo ele em quem ela pensava, mas numa linha temporal linear isso seria impossível, visto que ela conheceu o japonês anos depois de ter ficado louca. Aí vemos que a personagem lida com o amor como uma coisa só, independente do homem pelo qual ela sente o amor; se o alemão ou se o japonês, isso é irrelevante para a personagem, por isso ela disse pensar no japonês, quando na verdade pensava no seu amor que à época era o alemão, mas que no tempo atual da narrativa passa a ser o japonês. Resnais cria esse ponto de vista da personagem de forma magnífica, onde ressalta o valor do amor para o ser humano para além dos limites de fronteiras, as fronteiras são meramente políticas e o amor não respeita isso, é mais que isso. Se o alemão ou japonês são inimigos políticos da França, isso já não se espelha no plano civil, ou humano. O amor é algo mais que a guerra. Isso fica bem explícito no momento em que ela diz ter gritado “o teu nome em alemão” quando fala com o japonês.
E aí está outra curiosidade do filme. Os personagens não possuem nomes. O que elimina a individualidade entre as pessoas, mostrando-nos a indiferença em se tratar de um ou outro ser humano. Porém, ao final, os personagens principais passam a chamar um ao outro pelo nome de suas respectivas cidades, ele Hiroshima, ela Nevers. Uma contradição ao que foi posto até ali? Ou um belo apontamento crítico para o que somos induzidos a considerar-nos uns aos outros?


Creio que minha leitura de "Hiroshima mon amour" está aí, porém é bem óbvio que pelo alcance artístico da obra hajam milhares de outras leituras, e é bem provável que noutra ocasião, ao rever o filme, eu mesmo faça considerações bastante diferentes. Se alguém quiser contribuir, fica em aberto ainda esse e todos os textos e análises. Se alguém achar absurdo e errado algum apontamento meu, aceito críticas da crítica também!